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DasPlus entrevista a escritora e youtuber Thati Machado

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Ela sempre foi amante de bons livros, de boas histórias. Eis que, logo aos 12 anos, Thati Machado passou para “o outro lado” das obras. Começou a escrevê-las.

Não demorou para que as vivências como leitora redefinissem o seu caminho como escritora. E aconteceu pela autocrítica quanto ao estereótipo clássico das personagens femininas. “Foi em 2014 que eu publiquei o meu primeiro livro, o meu primeiro romance. Só que eu me lembro que, quando publiquei esse livro, fiz alguns questionamentos: ‘por que todos os livros que eu lia, e por que o primeiro livro que eu produzi não me representavam como mulher?’. Eu queria criar um personagem que me representasse, e que representasse a grande maioria das mulheres, que estão fora desse padrão de ‘corpo perfeito’, ou de corpo que a gente vê em capa de revista. E quando eu percebi que eu meio que reproduzia os estereótipos que eu consumi a vida inteira, eu pensei em criar alguma coisa diferente. Então, eu resolvi criar o ‘Poder Extra G’, que foi meu primeiro livro no Wattpad [plataforma canadense de autopublicação]. Eu criei uma personagem com 92 quilos, autoestima elevada, autoconfiante, dona de si própria, e que não se pautava pelo ‘ah, ela precisa emagrecer no final para se tornar uma mulher bem sucedida, ou ela precisa de um cara pra elevar a autoestima dela’. Ela é o contrário disso tudo. Ela já começa o livro se sentindo bem consigo mesma, sendo feliz, empoderada e dona de si”, descreve.

 

Foto: arquivo pessoal

Thati Machado com o campeão de audiência “Poder Extra G” (foto: arquivo pessoal)

 

O livro bombou. “Para minha surpresa, acabou tendo mais de um milhão de leituras online e ganhou um prêmio em 2016 [‘The Wattys’], como uma das histórias mais viciantes. O leitor que começa a ler vai até o final. Consegui alcançar muita gente de vários estados do Brasil e também de fora, como Portugal, e alguns países da África também. Foi ali que meu trabalho começou a ser visto e começou a ser falado”, conta.

Repercussão que logo ganhou outras plataformas. “Como eu vi que tava tomando uma proporção muito maior do que eu esperava, eu resolvi criar um canal no youtube [hoje com 10.650 inscritos], para estender um pouco esses assuntos que eu abordava nos meus livros. Depois que eu percebi que eu criei uma personagem gorda porque eu não me via representada, eu achei que eu podia representar mais uma porção de gente que também não se via nos livros. Então eu comecei a falar bastante de representatividade e sobre várias minorias, que não são minorias na verdade, mas é como a mídia chama. Eu comecei a inserir várias dessas ‘minorias’ como personagens importantes das minhas histórias, para que outras pessoas pudessem se identificar também, explica.

As reações que desperta são o combustível e a inspiração de Thati, para seguir na mesma toada: “o feedback que eu recebo das leitoras e de alguns leitores também é muito positivo. Eu lembro que no início eu pensava assim ‘nossa, é muita responsabilidade’. Porque as pessoas diziam que eu tinha mudado a vida delas, tinha mudado a relação delas com o corpo, com uma peça de roupa (como um biquini, um cropped), e eu pensava ‘nossa, mas eu só escrevi um livro!’, e eu pensava assim, ‘como é que eu posso ter mudado a vida de alguém só por ter escrito um livro?’“.

Thati vai além: “quando a gente olha para todas as mídias e a gente não se encontra, a gente pensa que não é boa o bastante pra estar lá. Quando vem uma personagem que mostra que ‘não, você é boa sim para poder estar lá’, e que eu estou aqui, e sou como você, as pessoas se sentem acolhidas, se sentem abraçadas. E isso é muito importante na construção da autoestima de uma mulher. E de um homem também, né? Mas eu digo das mulheres principalmente, porque são quem mais sofre com os padrões estéticos. Mas é muito louco a gente pensar que um livro pode ter mudado a vida de alguém. Eu recebo muito feedback nesse sentido. Eu recebo muita foto por e-mail, pelo facebook, de pessoas que disseram ‘olha, graças a você, eu tive coragem de ir à praia. Eu não ia à praia há 20 anos, porque eu tinha vergonha, e hoje eu fui à praia e me senti incrível’. Isso me toca muito. Isso me emociona muito. E eu acho que isso também me inspira a continuar fazendo esse trabalho, de representar mais pessoas, de mostrar pra elas que elas são incríveis como são”, afirma.

Com mais de 10 livros lançados, entre impressos e digitais, agora, Thati Machado lança “Singular”, que é protagonizado por um homem trans. “Quando eu criei o Noah, eu quis representar o meu noivo, que é um homem trans. Eu sabia que ele tinha muitos problemas e muitas questões com isso. Eu quis criar um personagem trans pra mostrar ‘olha, tá tudo bem, tá tudo bem ser como você é, tá tudo bem ser diferente do que as outras pessoas esperam’, e a mensagem principal era de que não existe certo ou errado. Quando você se sente bem com você mesmo, não existe certo ou errado. Então eu quis criar o Noah para que ele se sentisse representado, e outros homens trans também, porque falta representatividade para essas pessoas”, pontua. 

 

Thati Machado já acumula mais de 10 livros, entre impressos e digitais. Todos com a marca da representatividade (foto: arquivo pessoal)

Thati Machado já acumula mais de 10 livros, entre impressos e digitais. Todos com a marca da representatividade (foto: arquivo pessoal)

 

Falando sobre representatividade, muitas vezes Thati bate de frente com algo sempre terrível: a gordofobia. “Eu acho que a gordofobia ainda existe em todos os níveis sociais. O espaço público em geral não foi feito pra pessoas gordas. As pessoas gordas não passam na catraca do ônibus, elas não cabem no assento do avião, e elas passam por diversos constrangimentos. Então, como a sociedade não está preparada para lidar com o gordo, é mais fácil você não ter que vê-lo, você não ter que exibi-lo. Porque é como se fosse um segredinho sujo. ‘Olha, a gente faz roupa pra gordo, mas ninguém precisa saber’. Então eu acho que esse é um problema estrutural. Enquanto a gente ficar estereotipando pessoas gordas, tratando pessoas gordas como pessoas doentes, e colocando rótulos nessas pessoas – porque quando você é gordo, você automaticamente é também preguiçoso, desleixado, é uma pessoa que não se cuida, que não cuida da saúde -, então, se a gente colocar todos esses rótulos, as marcas ainda vão ter medo de associar o seu nome a pessoas gordas. E a partir do momento que a gente desconstrói essa ideia e que a gente mostra que o gordo tem espaço na nossa sociedade, que a sociedade é inclusiva para ele, a gente acaba um pouco com esse preconceito. É uma questão de mudar tudo: a estrutura social, a forma como a gente rotula as pessoas, e isso vai ser um reflexo da indústria da moda. Porque a gente não vai precisar mais esconder”.

A gordofobia também está sempre orbitando em torno das produções de Thati, seja nos livros, seja nos vídeos: “isso acontece com a maioria das mulheres gordas. A gente cresce tentando mudar uma coisa no nosso corpo, como se ela fosse um erro. Então eu achava que ser gorda era errado, e eu queria mudar, eu queria fazer alguma coisa a respeito. Isso se deve muito às coisas que eu ouvia de fora, da escola, dos amigos, às coisas que eu ouvia dos médicos e às coisas que eu ouvia dentro de casa. Basicamente toda a sociedade me fazia acreditar que ser como eu era era um erro. Então eu tive muito problema para lidar com esse corpo, que sempre foi gordo, e isso se manifestou de várias formas. Mas eu acho que a forma mais impactante nesse sentido é que quando eu tinha uns 12, 13 anos, eu tinha muitas cólicas, muitas dores, e eu não sabia de onde vinham. E toda vez que eu ia procurar um médico pra pedir ajuda, eles me diziam que se eu emagrecesse, a dor iria melhorar. Eu fiquei ouvindo isso até os 18 anos, que foi quando eu descobri que estava com uma endometriose de nível avançadíssimo. Eu já tinha perdido uma trompa inteira e uma parte da minha bexiga ‘simplesmente porque eu era gorda’, e esse era o problema. Não importava que eu estivesse morrendo de dor, ou que algum problema sério estivesse se agravando dentro de mim. O fato de eu ser gorda automaticamente colocava um rótulo em mim, e fazia com que os médicos fossem negligentes com a minha saúde. Acho que a história que mais me machucou foi essa, de eu ter que carregar uma doença durante 6 anos, que foi negligenciada só porque eu era gorda. Que se eu emagrecesse, tudo se resolveria. E não resolveu. Eu emagreci, e a endometriose continuou avançando. Acho que se eu fosse magra e chegasse com esse relato de dor, eles investigariam a fundo, mas como eu era gorda, era muito mais fácil colocar a culpa no sobrepeso e dizer ‘não, você está obesa e precisa emagrecer’. Enquanto eu estava procurando tratamento para emagrecer, eu poderia estar procurando tratamento para a endometriose, para não chegar ao nível de perder órgãos, e, enfim, ter que fazer várias cirurgias. Então eu acho que esse é o maior tipo de preconceito, principalmente porque ele vem de alguém que teoricamente deveria ajudar a gente, né, que são os médicos”, observa.

Felizmente, como em boas histórias, essa também teve um bom desfecho: “chegou um momento em que eu não queria mais ver médico nenhum, porque eu falei ‘cara, eu vou ouvir que eu sou gorda, e que eu tenho que emagrecer’. Mas eu encontrei uma médica que preza muito mais pela minha saúde completa (mental, física, qualidade de vida) do que pelo meu peso. Desde então a minha doença está controlada“, comemora.

 

Com muito amor pelo que faz, Thati Machado vem mostrando para muita gente os atalhos da autoestima (foto: arquivo pessoal)

Com muito amor pelo que faz, Thati Machado vem mostrando para muita gente os atalhos da autoestima (foto: arquivo pessoal)

 

Voltando à moda plus size, Thati Machado reconhece o crescimento do mercado, mas espera muito mais: “eu acho que a gente ainda tem muito pra caminhar. A moda plus size tem ganhado espaço, mas eu vejo muitas meninas no meu canal, por exemplo, que elas dizem ‘ah, as roupas plus size são mais caras, ou só vendem online e não estão nas grandes redes que eu tenho acesso, ou não chegam na minha cidade‘. Eu acho que a gente percorreu um caminho muito positivo, a gente teve conquistas incríveis, sem sombra de dúvidas, mas eu ainda acho que a gente tem um caminho longo a percorrer. Tem que ser uma moda que seja acessível pra todo mundo. Tem que ser uma moda inclusiva, que abranja diversos estilos, diversas questões econômicas, porque tem gente que pode pagar 300 reais numa calça, tem gente que só pode pagar 50. E assim como existe essa oferta nas roupas que não são plus size, eu acho que tem que existir no mercado plus size também. E nem sempre é o que a gente vê, né? Tem muita coisa ainda que a gente precisa acertar, ajustar. Uma coisa que me incomoda é que não existe uma padronização nos tamanhos. Tem lojas em que eu visto 50, tem lojas em que eu visto 52 e tem lojas em que eu visto 54. Isso é um pouco preocupante. Como é que você fica produzindo tamanhos diferentes, cada um produz como bem entende? E isso dificulta também a compra de roupas online. Eu acho que a gente pode se inspirar um pouco no mercado plus size dos Estados Unidos, onde existe um padrão”, sugere.

 

Foto: arquivo pessoal

Foto: arquivo pessoal

 

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